Há 25 anos, a Globo exibia o primeiro capítulo de Meu Bem Querer. A novela de Ricardo Linhares foi produzida durante um período de mudanças no comando da emissora. Mudanças essas que levaram à aposta da faixa das sete no gênero regionalista consagrado às oito – com títulos como Pedra Sobre Pedra (1992) e Fera Ferida (1993), assinados por Linhares em parceria com Aguinaldo Silva e Ana Maria Moretzsohn.
A trama estrelada por Alessandra Negrini, Murilo Benício, Flávia Alessandra, Leonardo Brício, Angela Vieira, José Mayer e Marília Pêra não foi a fundo no “realismo fantástico” característico das obras anteriores do autor. Ricardo privilegiou o folhetim, explorando (muito bem!) inúmeros clichês.
A produção contou com várias curiosidades, como a “influência” de Paulo Ubiratan nos bastidores. O diretor artístico faleceu em março de 1998, durante a implantação de Meu Bem Querer.
A despedida de Paulo Ubiratan
Em 1998, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, deixou a vice-presidência de Operações da Globo. Marluce Dias da Silva assumiu o posto, instaurando o Comitê Operacional. As várias áreas chefiadas por Boni passaram a contar com diretores próprios. A programação foi dividida entre Carlos Manga, responsável pelo conteúdo exibido entre 6h e 18h; Paulo Ubiratan, encarregado do horário nobre e, consequentemente, das novelas; e Daniel Filho, à frente da linha de shows.
Ubiratan foi vítima de um infarto fulminante em 29 de março – às vésperas do lançamento da nova grade e de Era Uma Vez…, às seis. O espaço entregue a ele foi dividido entre Manga e Daniel.
Uma das últimas resoluções de Paulo Ubiratan foi a troca de Escândalo, sinopse de Miguel Falabella candidata à vaga de Corpo Dourado, por Meu Bem Querer. O diretor estava tratando pessoalmente da escolha de locações. Dois meses antes de morrer, ele viajou para o Ceará com Ricardo Linhares.
“O Paulo me mostrou lugares lindos, como praias, lagoas e falésias. Ele gostava muito de Fortaleza, onde tinha uma casa”, relembrou o novelista em entrevista ao Jornal do Brasil (08/06/1998).
O investimento da Globo
Uma equipe de 90 pessoas rodou sequências da trama nas praias de Barra Nova, Canoa Quebrada e Morro Branco. As ruínas de Cumbuco serviram de locação para a fictícia cidade de São Tomás da Beira. As imagens externas da casa de Martinho (José Mayer) foram feitas numa mansão à margem da Lagoa do Banana, também em Cumbuco.
A Globo investiu R$ 90 mil em cada capítulo de Meu Bem Querer. O folhetim contemporâneo das oito, Torre de Babel, consumia R$ 85 mil, conforme destacado pela Folha de São Paulo (20/08/1998). A ideia era imprimir aos dois primeiros horários a mesma qualidade da faixa pós-Jornal Nacional.
“A Globo está num momento de mudanças, ‘Meu Bem Querer’ é um reflexo do movimento que está acontecendo”, destacou o diretor de núcleo Marcos Paulo à Folha de São Paulo (23/08/1998).
“E não podemos esquecer de Paulo Ubiratan, que batalhou para viabilizar esta novela, que, a princípio, era considerada cara demais”, exaltou Marluce Dias ao jornal O Globo (20/08/1998).
Elenco provisório
Em meio à reestruturação, a Globo instaurou uma medida administrativa que suspendia os salários de seus contratados, por seis meses, sempre que um trabalho era recusado. Letícia Spiller, às voltas com as gravações de um filme, declinou do convite para Rebeca (Alessandra Negrini) e foi enquadrada na tal regra.
“Ela explicou que não se sentiria bem fazendo mais uma personagem romântica e teve medo de botar em risco sua carreira. Devemos tudo o que temos à Globo, mas acho que a emissora não considerou a necessidade que o ator tem de estar em harmonia com o personagem para fazer um bom trabalho”, lamentou Marcello Novaes, então marido da atriz, ao Globo (14/06/1998).
Vera Fischer, que enfrentava problemas pessoais, não compareceu às primeiras reuniões de elenco e perdeu a personagem Ava Maria para Angela Vieira – alçada a protagonista após o destaque como Virgínia, em Por Amor (1997).
Também de Por Amor veio Murilo Benício (Antônio). Alessandra Negrini, Mauro Mendonça (pastor Bilac) e Leonardo Brício (Juliano) voltavam a dividir a cena meses após a conclusão de Anjo Mau (1997). Flávia Alessandra foi contemplada com a malvada Lívia após o sucesso de Dorothy, em A Indomada (1997). Bia Nunnes (Jacira) e Ricardo Petraglia (Gregory) repetiam o par de História de Amor (1995).
A espera de Lima Duarte
Lima Duarte foi outro que ficou de fora. O ator estava escalado para Fausto, noivo de Custódia (Marília Pêra). O desaparecimento dele, há 30 anos, levava a vilã à clausura; Custódia havia passado todo esse tempo trancafiada em seu casarão, de onde comandava toda a cidade de São Tomás de Trás.
“Achei o personagem interessante e sugeri que começássemos em Buenos Aires. Eu, Lima Duarte, me considero “viúva de [Carlos] Gardel”, conheço toda a sua vida e obra, tudo, tudo. O Gardel está enterrado no Cemitério de Chacarita, em Buenos Aires, onde há uma estátua dele com a mão estendida como a cantar. […] Acharia bonito começar assim minha participação”, contou o veterano ao jornal O Globo (24/05/1998).
Talvez por conta da sugestão de Lima, o tango Mi Buenos Aires Querido, na versão de Carlos Gardel e Maria Graña, foi incluído na trilha sonora.
Fausto, no entanto, não deu o ar da graça. Na reta final da narrativa, Martinho descobriu que o noivo de Custódia não havia fugido; o corpo dele estava embalsamado e era mantido pela malvada em um quarto secreto de sua mansão.
Referências ao mundo real
Lima Duarte acabou reverenciado através de Osmar Prado, intérprete do vereador Barnabé de Barros.
“Eu me propus a fazer, não uma imitação, mas uma homenagem a Lima. Ele foi meu padrinho na entrega de um prêmio em 1963. Na época, perguntou se eu iria seguir a carreira e eu disse que sim. Um dia, nas gravações de ‘Meu Bem Querer’, fiz uma risada e o diretor achou muito parecida com uma de Lima e não quis deixar. Ponderei que era o que eu queria e a risada foi ao ar”, confidenciou Osmar ao Estado de São Paulo (31/01/1999).
Através de Barnabé, Ricardo Linhares teceu críticas à política nacional. O vereador se vangloriava de suas estratégias populistas, como a distribuição de dentaduras e prêmios através de rifas. O autor se inspirou no general chileno Augusto Pinochet, então convertido em “senador vitalício”, para transformar o personagem em “vereador vitalício”.
“Mostro a realidade, mas com uma lente de aumento, que distorce as situações, que extrapola. O [delegado] Néris (Ary Fontoura), que só pensa em pendurar as chuteiras, me veio à cabeça quando o governo mexeu nas regras da aposentadoria. A Custódia é o descaso da elite com o povo. […] Pego o que existe na vida real e transgrido”, revelou Linhares em matéria de O Globo (16/09/1998).
Outra história da vida real transposta para a obra foi a de Jorgina Maria de Freitas, responsável por uma das maiores fraudes do INSS. Jorgete (Rosi Campos), empregada de Custódia, surrupiava verba da secretária de Planejamento da cidade.
Em fevereiro de 1999, Mário Roberto Pessanha, do elenco de apoio, faleceu logo após desfilar pela escola de samba Unidos de Villa Rica. Mário, que interpretava um vereador aliado de Barnabé de Barros, sofreu um infarto fulminante.
As queixas do elenco
O primeiro grupo de discussão de Meu Bem Querer indicou o desejo do público de ver Ava e Martinho juntos. O padeiro resistia aos encantos da cabeleireira em respeito a Inácio (Nuno Leal Maia), amigo dele e companheiro dela, morto nos primeiros capítulos. O novelista antecipou o romance.
Outros apontamentos vieram do próprio elenco. Marília Pêra protestou contra os rumos de Custódia, após a imprensa divulgar a responsabilidade da personagem sobre o incêndio na maternidade em que Ava deu à luz gêmeos.
“Gosto de fazer vilãs. Elas estão mais próximas dos demônios do público. Ninguém é bonzinho como as heroínas, mas daí a mandar matar duas criancinhas é demais. Liguei para os diretores e o autor e disse: ‘não quero ser assassina de bebês às 19h’. Nem de brincadeira. Isso seria a fera da Penha [caso policial de grande repercussão nos anos 1960]. Aí eles modificaram”, relatou a artista ao Globo (13/12/1998).
O desenrolar do enredo, porém, acabou implicando Custódia no crime. Os filhos de Ava sobreviveram ao incêndio, mas foram criados longe da mãe e dos avós maternos, Néris e Ieda (Laura Cardoso).
Laura, aliás, lamentou o pouco aproveitamento de uma paixão de sua personagem: o cinema. Cinéfila, Ieda batizou os dois filhos com nomes de astros da sétima arte, Ava Gardner e Gregory Peck.
“Achei que ela seria mais atuante. Ela poderia se vestir como as estrelas de Hollywood, por exemplo, brincar com isso. O fato de Ieda ser uma apaixonada por cinema ficou de lado”, comentou a veterana ao jornal O Globo (31/01/1999).
A coincidência da abertura
A abertura de Meu Bem Querer foi sugerida por Paulo Ubiratan. O diretor pediu a Hans Donner que desenvolvesse a vinheta a partir do trabalho de artesãos cearenses que desenhavam paisagens com areia colorida dentro de garrafinhas. Sem saber da indicação, Marcos Paulo procurou o designer, meses após a morte de Ubiratan, com a mesma ideia (Jornal do Brasil, 31/08/1998).
Impressionado com a coincidência, Donner levou o projeto adiante. Ele contratou duas artesãs que, durante uma semana, criaram paisagens dentro de quatro quadros de vidro. O resultado foi todo fotografado e transferido para o computador.
O tema de abertura foi regravado por Djavan, também autor da letra. A gravação original foi utilizada em Coração Alado (1980) e A Indomada. A Globo batizou a novela após a escolha da música, de mesmo nome; Meu Bem Querer foi chamada provisoriamente de Terra do Sol e Miragem.
Efeitos especiais
A computação gráfica foi utilizada na criação de um maremoto, narrado por Rebeca à filha Ester (Camila Farias). São Tomás de Trás foi criada após uma onda gigante devastar São Tomás da Beira – assim chamada por estar próxima ao mar. Desta cidade, sobraram apenas as ruínas da igreja onde, supostamente, Frei Tomás escondeu um tesouro. O religioso foi assassinado por populares interessados na fortuna; como castigo, Deus cobriu o lugarejo com a água.
O fantasma do religioso e a busca pela fortuna mobilizavam o núcleo infanto-juvenil, liderado por Pingo (Samuel Costa, destaque do filme O Menino Maluquinho, de 1995).
O maremoto, que durou apenas dois minutos no vídeo, consumiu R$ 50 mil e 60 dias de trabalho. Para a onda de 30 metros, a equipe de efeitos especiais produziu uma maquete de 600 metros quadrados, com uma cidade em miniatura coberta por 280 mil litros de água despejada através de tanques instalados no alto de uma rampa (Jornal do Brasil, 03/09/1998).
A separação de Alessandra Negrini e Murilo Benício
Apaixonados na ficção, Murilo Benício e Alessandra Negrini chegaram ao fim de Meu Bem Querer separados. O casamento de quatro anos foi rompido dois meses antes do último capítulo. Quando convidado para a produção, Murilo revelou o receio de levar a relação pessoal para o ambiente de trabalho, conforme explicou ao Globo (14/03/1999):
“Tenho muita intimidade com a Alessandra e não achava legal misturar as coisas. Mas estava enganado. E não foi a novela que acabou com a nossa união. Até usei em cena situações que estávamos vivendo, na realidade, para exorcizá-las e não ter uma úlcera. […] Claro que existe um sofrimento causado pela separação, mas temos um filho maravilhoso (Antônio). E eu amo a Alessandra, só que de uma maneira madura, como mãe do meu filho. […] Sempre que ela precisar, vou ajudá-la. Desejaria que todos se separassem assim”.
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